A Covid-19 já provocou a morte de quase 500 mil brasileiros, conforme o Painel Coronavírus. E muitos deles contraíram a doença em sua atividade profissional. É o caso das trabalhadoras e trabalhadores que atuam nos chamados serviços essenciais, por exemplo. Eles jamais ficaram afastados de suas atividades. A rigor, todo empregado que atua presencialmente fica exposto ao contágio, seja na sede da empresa ou no caminho de casa para o trabalho. Ainda assim, é possível considerar a Covid-19 como doença ocupacional?
Essa pergunta não tem uma resposta definitiva. Desde o início da pandemia, em março de 2020, o tema da Covid-19 como doença ocupacional vem sendo debatido nos meios jurídicos. E ainda não há um posicionamento claro sobre isso. Pode-se dizer, entretanto, que existe a possibilidade de a Covid-19 ser caracterizada dessa forma.
A seguir, a seção #DQT (Direito de Quem Trabalha) vai abordar mais detalhes sobre essa pauta. O texto abaixo recebeu o suporte da advogada Jane Salvador de Bueno Gizzi, sócia do escritório Gonçalves, Auache, Salvador, Allan & Mendonça (Gasam), de Curitiba (PR), integrante do Ecossistema Defesa da Classe Trabalhadora (Declatra). Confira!
Covid como doença ocupacional: entendendo o conceito
O primeiro passo para o trabalhador avaliar se a Covid-19 é doença ocupacional, o trabalhador deve entender do que se trata esse conceito. Vale explicar, primeiramente, que doença ocupacional é aquela que se desenvolve em razão da atividade profissional. Ou seja, existe uma conexão entre a enfermidade e a função exercida pelo trabalhador ou o seu ambiente laboral. É como se fosse uma relação de causa e efeito – o que o direito chama de nexo causal.
Pode existir nexo causal entre a Covid-19 e o trabalho? Na interpretação da advogada Jane Salvador Gizzi, a resposta é sim. “Todos os trabalhadores que não podem permanecer em casa durante a pandemia e precisam sair à rua, pegar transporte público, trabalhar de forma presencial, estão expostos ao contágio. Assim, deveria haver a presunção de que a contaminação se deu no ambiente laboral. Em meio à pandemia, a presunção não deveria se restringir apenas àqueles que atuam em atividades consideradas de risco”, defende Jane. A interpretação geral da justiça, entretanto, ainda é incerta.
Não há uma legislação específica que trate detalhadamente do assunto e enquadre a Covid-19 como doença ocupacional. Até aqui, a pauta foi abordada por meio de portarias, projeto de lei, medida provisória e notas técnicas. E alguns textos tiveram interpretações conflitantes. A gente mostra esse histórico a seguir.
Artigo 29 da Medida Provisória (MP) 927
O artigo 29 da MP 927/2020, divulgada pelo Governo Federal em março de 2020, definia que os casos de contaminação pela Covid-19 não seriam considerados ocupacionais, a não ser que houvesse a comprovação do nexo causal. Ali começava a polêmica em torno do tema.
Por exemplo: um médico da linha de frente do tratamento da Covid-19 é infectado. A probabilidade de ele ter contraído o vírus em sua atividade é enorme. Entretanto, se ele não comprovasse que o contágio ocorreu no hospital, a doença não ganha o status de ocupacional. Tratava-se, portanto, de claro desequilíbrio em desfavor dos trabalhadores.
O Supremo Tribunal Federal (STF), contudo, suspendeu esse artigo no mês de maio, entendendo-o inconstitucional. Além disso, o STF estipulou que, no caso das empresas que exploram atividade econômica considerada de risco, presume-se que o contágio do trabalhador aconteceu no trabalho.
Entretanto, em relação às demais situações, tudo dependerá da análise de cada caso.
Portarias 2.309 e 2.345
A Portaria 2.309/2020, publicada pelo Ministério da Saúde em agosto de 2020, mencionava a Covid-19 como doença ocupacional. Acontece, porém, que essa normativa perdeu efeito poucos dias depois, a partir da divulgação da Portaria 2.345/2020. Cabe destacar que nenhuma portaria tem força de lei.
Projeto de Lei (PL) 2.406
O PL 2.406/2020, que é objeto de análise no Congresso Nacional, permite caracterizar a Covid-19 como doença ocupacional independentemente da comprovação do nexo causal. O texto trata da alteração do artigo 169 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). No momento, o PL está em análise na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara dos Deputados. Você pode acompanhar os trâmites do PL aqui.
Notas Técnicas
A Nota Técnica (NT) SEI nº 56.376/2020 do Ministério da Economia, que também não tem força de lei, afirma que a Covid-19 é uma doença comum, e não profissional. Essa nota cita, todavia, que em circunstâncias específicas, dependo do modelo de trabalho, a Covid-19 pode vir a se enquadrar como doença ocupacional, equiparando-se a um acidente de trabalho.
A NT também define que, para o caso de Covid-19 ser considerado doença ocupacional, deve haver perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Isso é feito em todos os casos de doença ocupacional, segundo os termos dos artigos 19 a 23 da lei 8.213/91 – Lei da Previdência.
Já a NT GT Covid-19 nº 20/2020 do Ministério Público do Trabalho (MPT) trata de medidas de vigilância epidemiológica. Em outras palavras, esse documento aborda as medidas necessárias a serem adotadas pelos empregadores para prevenção e controle da doença. Além disso, estabelece que os médicos do trabalho deverão solicitar à empresa a emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), caso seja confirmado o diagnóstico de Covid-19. Isso deve ser feito mesmo em caso de mera suspeita quanto ao nexo causal. Ou seja, mesmo que ainda não se tenha certeza de que a contaminação se deu no local de trabalho.
Covid-19 como doença ocupacional: como o empregado deve agir se contrair a doença?
Em regra, se o empregado constatar que contraiu a Covid-19 no ambiente de serviço, será necessário tomar algumas medidas:
Emitir a CAT
O primeiro passo é o empregado comunicar o ocorrido ao empregador, que deverá emitir a CAT. “Entretanto, se o empregador se recusar, o próprio empregado pode emitir a sua CAT. Esse documento pode, ainda, ser elaborado por seus dependentes, pelo sindicato da categoria e até pelo próprio médico ou qualquer autoridade pública”, explica Jane Salvador.
Para saber como elaborar a CAT, consulte o site do INSS.
Perícia no INSS
Na perícia, o empregado vai levar a CAT, o exame PCR positivo e os documentos médicos. Neste momento, o INSS faz a análise do nexo de causalidade. Ou seja, o trabalhador deve explicar ao médico-perito por que considera que pegou Covid-19 no trabalho.
Os motivos podem incluir o desrespeito aos protocolos de segurança por parte da empresa. Exemplos disso são não disponibilizar álcool em gel devidamente ou ausência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), como máscaras e viseiras.
Outra causa possível é a desobediência ao distanciamento social. Isso ocorre quando o empregado dividia espaços reduzidos com outros colegas – uma pequena cozinha de restaurante, por exemplo.
Assim, caberá ao médico-perito definir, a partir desse relato, se a Covid-19 se enquadra como doença do trabalho.
Estabilidade no emprego: fator-chave da Covid-19 como doença ocupacional
O trabalhador que contrair Covid-19 deverá ficar afastado de suas atividades. Até o 15º dia de afastamento, caberá à empresa pagar o seu salário integral. Se ficar ausente por um período maior do que 15 dias, ele passa a receber o benefício do INSS na modalidade auxílio doença acidentário. Isso, claro, se o INSS reconhecer que ele contraiu a doença no trabalho. Detalhe: o contrato de trabalho não poderá ser rescindido ou alterado enquanto o profissional estiver em afastamento.
Além disso, assim que tiver alta médica, o empregado ganha estabilidade de 12 meses. Ou seja, a empresa não pode demiti-lo que se cumpra esse período. O prazo começa a valer assim que cessar o pagamento do auxílio doença acidentário pago pelo INSS. Esse é um dos principais diferenciais de se considerar a Covid-19 como doença do trabalho.
De outra forma, o empregado receberá apenas o auxílio doença. Esse benefício, entretanto, é diferente do auxílio doença acidentário, pois não dá direito a estabilidade.
Perícia negada em caso de Covid-19: o que o empregado deve fazer?
Caso a perícia-médica do INSS não considere a Covid-19 como doença ocupacional, o empregado tem a alternativa de recorrer administrativamente. Ele pode buscar a ajuda do sindicato da sua categoria e, caso precise ingressar na Justiça contra o INSS, deverá buscar um advogado da área.
Ao ingressar na justiça, a trabalhadora ou o trabalhador terá direito de contestar a decisão do INSS. “Eles poderão contar com testemunhas para comprovar que as condições de trabalho eram propícias ao contágio. Caberá à empresa, portanto, demonstrar que não foi negligente e que operava com todos os cuidados para evitar o contágio, como fornecer equipamentos de proteção individual e observar o distanciamento social, entre outros itens”, orienta Jane.
O reconhecimento do caráter acidentário do contágio é fundamental não só para se conseguir a estabilidade no emprego, mas também para a obtenção de outros direitos. Caso tenha ficado com sequelas que impeçam ou dificultem o exercício da sua atividade profissional, o empregado poderá requerer uma indenização por acidente de trabalho contra o seu empregador perante a Justiça do Trabalho.
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#DQT (Direito de Quem Trabalha) é um serviço de conteúdo informativo elaborado pelos escritórios Gonçalves, Auache, Salvador, Allan & Mendonça (Gasam), de Curitiba (PR), e Marcial, Pereira e Carvalho (MP&C), de Belo Horizonte (MG). Ambos integram o Ecossistema Defesa da Classe Trabalhadora (Declatra).