Em meio ao esvaziamento provocado pela Reforma Trabalhista, os sindicatos lutam para se adaptar ao jogo de forças do novo mercado. As recentes transformações e a evidente falta de proteção aos grupos menos favorecidos surgem como oportunidades para essas entidades mostrarem por que continuam vitais à classe trabalhadora.
Por Bruna Schlisting
Edição Emanuel Neves
Quem transitava pelo bairro São José, em Novo Hamburgo (RS), na manhã de 28 de junho, deparava-se com mulheres gritando palavras de ordem ao redor de um vaso sanitário. A privada ficava em frente a uma fábrica de calçados. O grupo era formado por funcionárias que reclamavam o prosaico direito de ir ao banheiro. Parece jocoso, mas é dramático. Naquela semana, uma colega fora impedida de fazer suas necessidades em meio à jornada de trabalho. A fábrica estipula horários fixos para isso, com o intuito de não prejudicar a produção. A moça, de 19 anos, pediu três vezes ao seu supervisor para ausentar-se momentaneamente. Após a terceira negativa, não resistiu e urinou na própria roupa. Ainda teve que passar pelo constrangimento de se deslocar até o departamento de RH para solicitar a liberação e ir para casa. Detalhe: ela estava grávida.
Há o relato de que a fábrica nem sequer ofereceu apoio ou condução para amenizar a situação da empregada. O Sindicato das Sapateiras e Sapateiros de Novo Hamburgo protocolou uma denúncia no Ministério Público do Trabalho (MPT-RS). Um acordo coletivo foi encaminhado junto à empresa para sanar o problema. O escárnio registrado na fábrica de calçados gaúcha é uma situação extrema. Mas não é um fato isolado. Diariamente, milhões de trabalhadoras e trabalhadores enfrentam desrespeitos semelhantes a esse. O século 21 avança e oferece condições inimagináveis em termos de tecnologia e de oportunidades. Mas a classe trabalhadora ainda se vê diante de atrasos dignos da Revolução Industrial. Em casos assim, torna-se evidente a importância de movimentos de caráter protetivo.
O próprio avanço tecnológico traz cenários desafiadores nesse sentido. A pandemia impulsionou a digitalização, com a aplicação ostensiva – e atabalhoada – do home office. O resultado: jornadas estendidas e uma mistura nem sempre saudável entre vida pessoal e profissional. A chegada do trabalho híbrido se anuncia como a nova transformação, suscitando questionamentos e adaptações. No Brasil, o cenário de incertezas eclode em concomitância com uma nova investida do governo e do patronato no sentido de retirar direitos trabalhistas, aprofundando as perdas promovidas pela Reforma Trabalhista de 2017. Esse marco temporal, aliás, determinou o sufocamento da principal arma de articulação e defesa da força de trabalho: as entidades sindicais.
A “morte dos sindicatos”, decantada nos últimos anos, é um fenômeno recorrente. Isso é o que ensina o professor Marco Aurélio Santana, do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele faz um alerta acerca do benefício histórico dos sindicatos. “A história da exploração capitalista mostra como foi sempre melhor para a classe trabalhadora ter sindicatos que a represente do que não tê-los. O capital tem essa noção e, por isso, quer bani-los constantemente do cenário”, explica Santana, que coordena o Núcleo de Estudos Trabalho e Sociedade (NETS). “O capitalismo é um sistema de crises condenado a arranjar e desarranjar constantemente suas bases”.
Assim, a intempérie provocada pela pandemia e pela aceleração das novas tecnologias trouxe um novo elemento para o debate acerca da relevância da atuação dos sindicatos.
Do auge ao declínio forçado
Os sindicatos surgiram no país a partir da última década do século 19. Desenvolveram-se durante a Primeira República (1889-1930), caminhando na resistência às modificações econômicas e sociais produzidas pelo incipiente processo de industrialização de um país que pretendia abandonar as formações econômicas pré-capitalistas.
Em 1931, após a chegada de Getúlio Vargas ao poder, o movimento sindical brasileiro se estabelece como estrutura oficial do Estado. É quando entra em vigor a Lei da Sindicalização. De lá para cá, os sindicatos jamais viveram uma fase tão complexa quanto a atual. É possível determinar um momento de intenso crescimento da atuação organizada da classe trabalhadora a partir do final da década 1970. Mesmo em meio à Ditatura Militar (1964-1985), o movimento operário, sobretudo dos metalúrgicos do ABC paulista, organizou greves históricas que contribuíram para o fortalecimento sindical e para a mudança do cenário político. Pouco depois, a Constituição de 1988 estabeleceu uma liberdade de associação que passou a dispensar a intervenção do poder público.
Na década de 1990, entretanto, os governos Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso coordenaram uma ríspida implementação do neoliberalismo. A consequência foi a flexibilização das leis trabalhistas, iniciando um descolamento entre a classe trabalhadora e os sindicatos tradicionais. Embora os anos 2000 tenham sido mais brandos, a década neoliberal representou o começo da diminuição da relevância sindical e das lacunas para as atuações das instituições representativas da classe trabalhadora.
O cenário de enfraquecimento se intensifica a partir das reformas de 2017. Esse rearranjo eliminou a contribuição sindical obrigatória – que correspondia a um dia de trabalho por ano de quem possuía carteira assinada. Além de retirar um subsídio fundamental para a articulação dos sindicatos, a nova normativa estabeleceu uma maior flexibilidade de negociação entre empresas e empregados (as). Com isso, ocorre um movimento de individualização das relações que acaba por esvaziar a articulação coletiva. “Cada dia perdemos mais receitas. E também notamos um afastamento dos representados. Perdemos funcionários por falta de condições de mantê-los diante da ausência de perspectiva de melhoria. Nossa situação é de total vulnerabilidade financeira”, revela Isabel Baptista, presidente do Sindicato das Secretárias e Secretários do Estado de São Paulo (Sinsesp). E os números confirmam que a situação do Sinsesp é a tônica do movimento sindical.
O último levantamento sobre taxa de sindicalização é de 2019. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstram que os sindicatos abrangiam 11,2% da população ocupada naquele ano. Em 2018, havia 12,5% de trabalhadores associados. A mudança trazida pela Reforma Trabalhista é ainda mais perceptível. De 2017 para cá, mais de 3 milhões de pessoas deixaram de ser sindicalizadas. O baque surtiu efeito mesmo nas categorias mais fortes, com a queda da adesão no setor dos transportes, armazenagem e correios. “A Reforma Trabalhista se fundamenta em pressupostos neoliberais e gerenciais. Sua base está na ideia de que a ‘modernização’ das relações de trabalho não pode ser alcançada com proteção social, direitos universais e sindicatos fortes”, enfatiza a professora Patrícia Vieira Trópia, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Ela também faz parte da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (Remir).
A Rede investiga os impactos da reforma, que prometia estimular a negociação coletiva e fortalecer os sindicatos. “Nossas pesquisas identificam exatamente o oposto”, salienta Patrícia. De modo geral, a reforma tornou as condições para a negociação adversas à defesa dos direitos dos trabalhadores e favoráveis ao patronato. “Mas não é possível afirmar que esta investida do Estado e da burguesia consiga acabar com o sindicalismo”, sublinha. Atualmente, o Brasil é um dos países com mais sindicatos patronais e profissionais do mundo. São quase 17 mil sindicatos ativos, sendo 5174 de empregadores e 11257 de trabalhadores. O cálculo é da Secretaria de Trabalho, vinculado ao Ministério da Economia, e agora pertencente ao recriado Ministério do Trabalho e Previdência.
Autonomia subordinada
Os elementos que surgem em meio à crise dos sindicatos tornam o contexto ainda mais grave. É o caso do crescimento do trabalho de plataforma, um fenômeno da nova economia que confunde autonomia e liberdade com precarização do trabalho. O caso mais emblemático é o dos motoristas de aplicativos móveis, uma categoria crescente que só agora começa a articular os primeiros vínculos sindicais. A praxe da chamada uberização, entretanto, é caracterizar os motoristas como trabalhadores desregulamentados. “Isso incentiva a concorrência e instiga a ideia de empreendedorismo, parceria, colaboracionismo e do mito do trabalhador autônomo”, confirma Patrícia Trópia.
Em março de 2021, o Instituto Locomotiva contabilizou mais de 32 milhões de trabalhadores (as) em plataformas digitais no Brasil. Esse contingente representa cerca de 20% da força de trabalho no país. O mesmo percentual era de 13% da população até fevereiro do ano anterior. O crescimento é fruto da crise pandêmica e da alta do desemprego, que ultrapassa 14% da população economicamente ativa. A pesquisa cita a “appficação” como a transcendência da uberização, por existir uma gama de aplicativos dando lugar a trabalhadores em situações análogas. Esse modelo se relaciona com as mais recentes morfologias do trabalho, exercidas por meio de home office ou teletrabalho, que muitas vezes são vinculadas a controles algorítmicos.
Aqui, temos o que o professor Marco Aurélio Santana, da UFRJ, chama de “falta de neutralidade tecnológica”. Isso porque as plataformas atuam com base na lógica do capital e do neoliberalismo contemporâneo. São profissões ancoradas no discurso de liberdade em meio a processos gradativamente individualizantes e desprovidos da maior parte dos direitos básicos.
Em busca de referências
A consolidação do home office traz um novo fator para a crise dos sindicatos. Esse modelo, mesmo na sua variação híbrida, tende a ampliar o isolamento e a consequente desarticulação da força de trabalho. A fragmentação pode representar um estímulo ainda maior à corrosão dos coletivos de trabalhadores, que encontram dificuldades para lidar com essa transformação. “Isso trouxe muitos problemas para a cobertura que os sindicatos poderiam ter dado ao conjunto de trabalhadores obrigados a esta forma de trabalho. Como, por exemplo, vistoriar condições de trabalho dentro da casa das pessoas?”, questiona Santana.
Além disso, o professor elenca problemas como a falta de regulamentação para o trabalho híbrido, a insegurança jurídica e os resultados negativos de ordem física e mental. O Sinesp, por representar um setor bastante afetado pela migração do local de trabalho, desponta com um exemplo de sindicato que conseguiu mediar o pleito por melhores condições para o trabalho a distância. “Sentimos o impacto nas jornadas de trabalho mais extensas para as secretárias. Reivindicamos junto ao setor patronal que a regra da jornada fosse respeitada e que os excessos fossem considerados como extra. Fomos atendidos em nossa primeira negociação”, conta Isabel Baptista.
Ações como a do Sinesp colaboram para a formação de uma nova massa crítica e jurisprudencial, capaz de guiar os sindicatos neste momento de readaptação. É difícil projetar como se dará a acomodação de forças daqui em diante. E isso pode se configurar em uma oportunidade para o reagrupamento dos atores que historicamente protagonizam a proteção e a defesa da classe trabalhadora.
Caminho de mão dupla
A pandemia, a exposição de trabalhadores (as) menos favorecidos (as) ao vírus e o recrudescimento da precarização podem ser estopins para reacender a consciência da classe trabalhadora. Um exemplo disso vem do próprio trabalho de plataforma. Ocorridas em junho de 2020, as greves dos entregadores e entregadoras, chamadas de “Breque dos Apps”, sugeriram o florescimento de uma nova vertente do trabalho organizado. “Essas greves explicitaram desafios. Os protestos tiveram o potencial de vocalizar a questão da precarização e da uberização vivida não apenas pelos entregadores, mas como sendo a realidade de várias categorias”, comenta Patrícia. Ela relata a participação dos sindicatos nos breques, como o Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Moto-Taxistas do Estado de São Paulo (SindimotoSP). O SindimotoSP prestou apoio político e financeiro, com envio de carros de som e distribuição de máscaras e alimentos.
Em São Paulo, o número de pessoas atuando como motofrete cresceu 40% apenas no primeiro ano da pandemia. São cerca de 305 mil entregadores (as) na capital paulista. Segundo o SindimotoSP, muitos deles trabalham 16h por dia para receber menos de R$ 2 mil por mês, com desconto de gasolina. As reinvindicações do grupo incluíam melhores condições de trabalho, seguro contra acidentes e roubos, distribuição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e garantia de remuneração para profissionais contaminados pelo vírus, entre outras exigências.
O exemplo do Breque dos Fretes, aliás, segue um movimento internacional iniciado com a greve dos entregadores de aplicativos de Londres, ainda em 2016, e replicada em outros países. Marco Aurélio Santana classifica a atual conjuntura como um caminho de mão dupla. A alternativa é utilizar os próprios aplicativos como elementos aglutinadores da representatividade, no sentido de organizar novos perfis da classe trabalhadora e promover a aproximação com a atuação sindicalizada.
A proposta de Santana é direcionar o foco para essa nova base, a partir de um debate democrático e sem visões limitantes. “Mais rico e produtivo seria pensar nas possíveis sinergias e potências das relações entre eles”, avalia. Da mesma forma, a professora Patrícia Trópia indica o momento da tecnologia da informação como uma oportunidade de os sindicatos se aproximarem da base, organizar assembleias, eleições, paralisações e greves. No Sinsesp, o caminho tem sido o da busca de conscientização por meio da capacitação. A entidade promove cursos online e congressos sobre temas prementes, como o impacto da inteligência artificial no trabalho. A receptividade, entretanto, ainda é baixa. “As pessoas estão entusiasmadas com a não contribuição compulsória e não percebem quanto estamos ficando enfraquecidos. O mercado já demonstra queda salarial e soberania dos empregadores nas decisões”, avisa Isabel Baptista.
Pode-se depreender, portanto, que os novos arranjos do mundo do trabalho, mesmo os mais disruptivos e inovadores, não podem prescindir do sindicalismo – uma das potências mais duradouras e eficientes da história do capitalismo. Apesar dos obstáculos, os sindicatos encontram oportunidades de remanejar caminhos em meio ao terreno conturbado do novo mercado. “Como em muitos outros momentos, já levaram flores à cova dos sindicatos. Entretanto, aos poucos, apesar de combalidos, eles estão reagindo”, finaliza Santana.
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